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terça-feira, 24 de maio de 2016

Fantasmas de Castelo do Piauí: um ano após o estupro coletivo, cidade ainda tenta esquecer tragédia !!

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Texto e vídeos: Orlando Berti*. Fotos: Orlando Berti e Ricardo Morais, enviados a Castelo do Piauí

Fantasmas existem na mente de quem acredita. Eles são rejeitados pelos céticos. Assombram e incomodam quando são frutos de fatos ainda não aceitos ou polêmicos em uma sociedade.
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Castelo do Piauí e sua atual pacatez. Uma cidade interiorana. (Foto: Orlando Berti/O Olho)
A cidade de Castelo do Piauí (a 199 quilômetros ao Norte de Teresina) vive entre lutar contra fantasmas e tentar levar uma pacata vida interiorana. Esta semana completa um ano do estupro coletivo em que quatro meninas foram raptadas, violentadas e depois jogadas de um desfiladeiro na cidade. Uma delas morreu e as outras três levam traumas para sempre. Os acusados: quatro menores e um adulto. Um desses garotos também terminou sendo assassinado pelos colegas enquanto estavam encarcerados.

Passaram-se 52 semanas da tragédia que abalou o Brasil. Discussões, debates acalorados, possibilidade de criação de novas leis, famílias destroçadas, duas mortes e o sentimento que a vida tem de continuar formam o enredo que alimenta e tenta afastar os fantasmas do caso e até exorciza-los.

A reportagem do O Olho esteve novamente em Castelo do Piauí e conta alguns dos fantasmas não esquecidos sobre o caso e como a cidade, que tem pouco mais de 18.160 habitantes, quer esquecer o fato que a marcou como palco de um dos crimes mais bárbaros ocorridos este século no estado.

Vídeo mostrando como está a vida noturna atual em Castelo do Piauí:
Fora os fantasmas ligados à tragédia do estupro coletivo, que completa um ano nesta sexta-feira (27/05), tem sido de assustar a estrada que liga Campo Maior a Castelo do Piauí, PI-115 (único acesso asfaltado entre a capital do Piauí e a Capital da Cachaça, como é conhecida a terra castelense). São 99 quilômetros de muita buraqueira e quase certeza de que a região tem sido esquecida por muitos dos poderes públicos. Ações sociais foram deixadas de lado depois que a temática do estupro coletivo deixou de ser debatida na mídia.

Assusta também as centenas de motoqueiros circulando a cada minuto, a maioria menores de idade. O uso de capacete é completamente esquecido. Amedontra mais ainda a quantidade de jovens ingerindo bebidas alcoolicas nos mais diversos pontos da zona urbana e a certeza que a ausência de políticas públicas para a juventude não são isoladas somente a Castelo, e sim endemias que povoam e multiplicam-se em todo o Piauí.
AS FAMÍLIAS DAS MENINAS VÍTIMAS DO ESTUPRO COLETIVO: SILÊNCIO
Falar sobre uma tristeza é complicado para a maioria pessoas. Quando essa tristeza envolve abuso sexual, termina, em muitos casos, em tabu. A principal medida dos familiares das quatro meninas vítimas da tragédia do Morro do Garrote, local do crime, é o silêncio.
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Vista de Castelo do Piauí feita no Morro do Garrote, lugar do estupro coletivo. (Foto: Orlando Berti/O Olho)
Quando alguém toca no assunto para familiares e vítimas, aparecem os fantasmas de um final de tarde em que as garotas haviam ido tirar fotografias naquele morro, localizado a menos de dois quilômetros da cidade.

No dia do crime as vítimas foram encontradas pelos algozes. Eles estavam ali usando drogas e planejando crimes. As meninas foram amarradas e violentadas em um carrossel de terror digno dos enredos mais chocantes.

Os gritos de socorro não ecoaram ao ponto de serem ouvidos. Ali mesmo a sentença delas, mesmo sendo vítimas de abuso por infinitos minutos, foi decretada: a morte. Foram amarradas e jogadas de um desfiladeiro. Uma a uma. Sofreram horas e somente foram encontradas no final da noite daquele fatídico 27 de maio, uma data que assusta Castelo do Piauí.

As meninas-vítimas, hoje com idades entre 16 e 18 anos, continuam sob a supervisão de tratamento psicológico.
Vídeo mostrando como está o local da tragédia um ano depois:
Elas e os familiares preferem o silêncio ao comentar o fantasma do dia 27. Os parentes alegam que dar entrevistas sobre o fato só remonta os acontecimentos, gerando mais sofrimento.

Como um mantra, pouca gente fala abertamente na cidade sobre esse fantasma. Quase como um acordo coletivo, só que informal, o município tenta tocar sua vida para frente e dar um basta na história que tanto entristeceu a maioria da população.

As três sobreviventes dividem o tempo entre estudos em Teresina, uma delas foi morar com parentes na capital, e duas em Castelo do Piauí. São pacatas, pouco saem de casa. Procuram levar uma vida normal. Sa normalidade possível após passarem por tantos dramas.
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Castelo do Piauí e sua busca por respeitar a tragédia. (Foto: Orlando Berti/O Olho)
A cidade as respeita em sua dor e pouco se toca sobre o assunto em rodas. Elas recebem sorrisos e não perguntas curiosas.

Não há vitimização das meninas e suas famílias. Castelo do Piauí respeita suas dores.
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Parte de baixo do Morro do Garrote. (Foto: Orlando Berti/O Olho)
Por compreensão disto, a reportagem não insistiu em depoimentos de familiares e muito menos conversar com as meninas após as negativas e pedidos de respeito de que falar sobre o ocorrido no Morro do Garrote em 27 de maio de 2015 só traria tristes lembranças.

Dos parentes das vítimas o único que aceitou falar foi o comerciante Jorge Feitosa, pai de Danielly Rodrigues Feitosa, 17 anos, a vítima fatal do estupro coletivo. Ele pediu para não ser fotografado ou filmado.

Passadas 50 semanas da morte da jovem, que ficou internada por quase duas semanas em Teresina depois de todos os sofrimentos no Morro do Garrote, o pai desabou em chorar ao relembrar do caso. Pouco conseguiu falar mais que isso. É um senhor que tenta levar sua vida de comerciante, mas que ainda não curou os fantasmas do falecimento da filha. O mesmo sentimento é vivido pelo restante dos parentes, principalmente a mãe e o irmão de Danielly, braços direito de uma família muito respeitada em Castelo do Piauí.
O respeito também foi mantido e a entrevista encerrada.

Familiares da vítima fatal do estupro coletivo de Castelo do Piauí ainda aguardam a prometida lei que, sem pedido deles, foi batizada com o nome da menina. A legislação está para ser discutida no Congresso Nacional e prevê penas mais duras para casos envolvendo estupros contra menores, inclusive com endurecimento de penas para participação de pessoas com menos de 18 anos de idade envolvidas em atos do tipo.

FAMÍLIAS DOS MENORES CONDENADOS: PRECONCEITO E CONTINUAÇÃO DE DESESTRUTURAÇÃO
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Menores circulando sem capacete pela principal avenida de Castelo. (Foto: Orlando Berti/O Olho)
Fantasmas também são vividos pelos parentes dos quatro adolescentes condenados pelo envolvimento na tragédia.
Os garotos I., J. e B., hoje respectivamente com 16, 17 e 16 anos continuam recolhidos ao CEM – Centro Educacional Masculino, na zona Norte de Teresina. Os três cresceram e estão fortes. Com exceção de I. os outros dois estão mais corados e aparentam melhores feições. B., que é o mais novo e era o mais franzino na época do crime, foi o que mais pegou corpo adulto.

O trio de menores permanece jurando inocência. Eles relatam à Justiça e à imprensa que o único crime que cometeram foi o assassinato do também condenado pelo crime Gleison Vieira da Silva, ocorrido em 17 de julho do ano passado enquanto. Os quatro já cumpriam medida socioeducativa por causa da tragédia em Castelo do Piauí.

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Cadeira há quase um ano na frente da casa de menor. Espera? (Foto: Ricardo Morais/O Olho)
Somente a família de B. continua morando no mesmo lugar. Uma cadeira, a mesma que ostentava a entrada da casa há um ano, permanece na frente da residência, uma pequena casa de conjunto de três cômodos e sem pavimentação na porta. Parece que o lugar está ali esperando a volta do filho.
A mãe de B., uma dona de casa, permanece sofrendo de depressão e seu pai, vendedor ambulante de peixes, continua envolvido mais profundamente no alcoolismo.
Quando a reportagem regressou este ano à residência da família de B. seu pai estava muito embriagado e bastante agressivo. Era acompanhado do irmão mais velho de B., um rapaz de 17 anos.

“Será que vão soltar meu irmão? Ele não tem culpa. Todo mundo sabe quem fez o crime”, apelou o rapaz, que disse, orgulhoso, hoje fazer a sétima série. O irmão de B. também destacou que sempre que pode, sua mãe vai visitar o irmão em Teresina. “Mas nem sempre isso acontece, a gente vive de Bolsa Família, tem pouco dinheiro. Vê se dá uma força aí para a gente tentar soltar ele”, finalizou o irmão que disse que gostaria de ver B., mas como é menor de idade não pode ter acesso ao CEM.

Os fantasmas do caso fizeram com que as famílias de I. e J. saíssem de suas residências. Elas moravam  a pouco mais de cem metros de distância, também na periferia de Castelo do Piauí.
Vídeo mostrando que pouco mudou no lugar da tragédia de Castelo do Piauí:
A casa de J. foi colocada à venda. A família de I. morava em um galpão, em que sempre funcionou um bar. No lugar atualmente não mora ninguém.

A mãe de J. veio residir em Teresina para dar mais assistência emocional ao filho. O pai de J., que meses antes do crime tinha se separado da mãe, foi morar na zona rural do município. Envergonhado, vive praticamente isolado e dedicado a trabalhos braçais.
O “sumiço” foi o destino tomado pela família de I. só que de maneira mais radical. O garoto é considerado o “mais problemático” e era o que tinha mais envolvimento com a polícia. Ele residia com o pai, idoso, a mãe e dois irmãos menores de dez anos.
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Casa de Gleison não existe mais. Foi vendida e destruída. Novo lugar. (Foto: Ricardo Morais/O Olho)
Na vizinhança ninguém sabe dizer do paradeiro da família de I. Versões dão conta que familiares foram para São Paulo, mas ninguém confirma. “Sumiram como fantasmas”, disse um vizinho que morava em frente ao antigo galpão que servia de residência à mãe, ao pai e aos dois irmãos pequenos de I.

A residência da família de Gleison foi vendida e posta abaixo. O lugar agora abriga um comércio e uma casa, totalmente diferente do barraco que abrigava a família.
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Casa de um dos menores. Isolamento social e vergonha de julgamento público. (Foto: Ricardo Morais/O Olho)
Segundo vizinhos, tão logo ocorreu o assassinato do menor condenado pelo estupro coletivo a mãe vendeu o lugar, pois estava hostilizada por moradores da região. Ela teria comprado um terreno na periferia da cidade e depois também vendido. Hoje a mãe, o irmão deficiente mental, as irmãs crianças e uma avó idosa residem em uma casa de conjunto popular de pouco mais de 20 metros quadrados que não tem pavimentação. A família passa o dia toda trancada. Eles são quase vizinhos da família de B. Vivem do Bolsa Família e a mãe, depois da morte do filho, pouco fala.

LOCAL DO CRIME UM ANO DEPOIS: INCÊNDIO, DROGADOS E RELIGIOSOS
O Morro do Garrote, palco do estupro coletivo de Castelo do Piauí continua praticamente o mesmo. Isso para quem o enxerga à primeira vista. De perto, muito mudou.
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Vista do exato lugar em que as meninas foram jogadas. (Foto: Orlando Berti/O Olho)
Para se chegar a um dos lugares mais altos em que se pode ver a zona urbana de Castelo do Piauí precisa-se deslocar-se da principal via do município, a avenida Antonino Freire. Uma rua calçada leva ao morro. São pouco mais de 350 metros pavimentados e depois quase outros 900 metros vicinais.
Tudo continuava quase do mesmo jeito, inclusive a vida pacata que seguia naquela região.
Boa parte desse percurso de pouco mais de 1.200 metros é feito sem ver nenhuma casa e fazendo ter a certeza que é um “lugar estranho”.
Vídeo do Morro do Garrote um ano depois do estupro coletivo:
O que mudou em um entorno de 500 metros do morro foi que o loteamento que iniciara terraplanagem antes da tragédia ainda está pouco colonizado. Havia uma casa pronta e duas em término de construção.
Nenhum sinal de alma-viva.
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Única casa perto do lugar da tragédia. Está abandonada. (Foto: Orlando Berti/O Olho)
Bem perto do único acesso ao Morro do Garrote iniciou-se a construção de uma pequena residência mas também havia sinais de paralisação a algum tempo.

A reportagem refez o percurso das quatro garotas e assim como no final de uma tarde dos últimos dias de maio notou que o morro, que tem 11 metros de altura, continua sem ser frequentado mas proporcionando uma linda vista da cidade, fato que gerou o interesse daquelas quatro menores de idade naquele final de tarde de uma quarta-feira.
A árvore no topo do Garrote em que as quatro jovens foram violentadas sexualmente pelo desempregado Adão Vieira da Silva, 41 anos, e por quatro menores, continua igual. Um dos pedregulhos em que as meninas eram ameaçadas caso não concordassem em ser seviciadas ameaça desabar.

No local em que as garotas foram atiradas, de uma altura aproximada de quatro metros e meio, depois de violentadas, continua de difícil acesso e cheio de lixo. Garrafas pet e algumas de sidra provam a presença de pessoas.

O único som ouvido ali era de quatro bois que pastavam nas imediações.

O Morro do Garrote está mais verde que no mesmo período do ano passado, fruto das chuvas mais generosas de 2015 para 2016. Também são visíveis que a natureza do lugar tenta se recuperar de misterioso incêndio ocorrido semanas depois da tragédia. Pergunta-se até hoje se foi para apagar algum vestígio do que ocorreu sobre a tragédia.

O morro foi cercado novamente e foi feita uma terraplanagem nas proximidades da cerca. O lugar continua dando espaço apenas para criação de gado. É como se essas barreiras fossem justamente feitas para contribuir com o esquecimento da tragédia.
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Perto do Morro do Garrote. O único morador do entorno. Sem medo de fantasmas. (Foto: Ricardo Morais/O Olho)
O único morador do entorno é o caseiro J.O.F., 30 anos, que reside há poucos meses na região. Ele toma conta de um terreno que fica a 600 metros do morro. Da porta do lugar dá para ver o Morro do Garrote. “A gente não tem medo, apesar de dar um medo, que a gente termina se acostumando”, relatou.

J.O.F. fala que o local continua sendo frequentado por religiosos e por pessoas “que vem fumar uns negócios”. Geralmente os rituais religiosos são feitos entre os finais das noites e inícios das madrugadas.

Os que “fumam negócios” frequentam mais o local entre os finais das tardes e meio da noite. “Não tenho medo de fantasma, tenho medo é de gente ruim. E aqui a gente expulsa esse povo”, finalizou o caseiro.

Fantasmas ou não, como na ficção ou não, metem medo. Em Castelo do Piauí os fantasmas de uma tragédia é que mais incomodam ou são exorcizados naturalmente pelo melhor de todos os remédios: o tempo.

* Jornalista e professor universitário. Atua em O Olho via Projeto de Pesquisa de Etnografia das Redações tentando entender o modo de fazer jornalismo no Piauí.

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